Homília para a Solenidade da Sagrada Família – Ano C
Leituras facultativas: 1 Sam 1, 20-22.24-28; Salmo 83 (84); 1 Jo 3, 1-2.21-24; Lc 2, 41-52 29/12/2024
Caríssimos irmãos e irmãs, celebramos hoje a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José, modelo perfeito de fé, de esperança e de caridade. Nesta ocasião especial, damos também início ao Ano Jubilar, um tempo de graça e renovação, no qual somos convidados a caminhar como “Peregrinos de Esperança”, inspirando-nos no exemplo luminoso de Jesus, Maria e José.
Neste dia somos convidados a olhar a família como santuário da vida e berço da fé e também a redescobrir a nossa vocação pessoal, como filhos e filhas de Deus.
- Viver a vida em chave vocacional
As leituras de hoje revelam-nos uma verdade essencial: Deus chama-nos a todos. Seja no discernimento do nosso caminho ou na vivência de um estado de vida já assumido, o Senhor interpela-nos, chama-nos continuamente.
No Evangelho, Jesus, aos 12 anos, no Templo, afirma com clareza a centralidade da Sua missão e da vontade do Pai na Sua vida: “Não sabíeis que Eu devia estar na casa de Meu Pai?” Este episódio inspira-nos a viver com um coração aberto ao que Deus nos pede, tanto nos grandes momentos de decisão como nas pequenas escolhas do dia a dia. E este é o caminho certo para ir ao encontro do anseio de felicidade que está no nosso coração – “Felizes os que moram na vossa casa, Senhor”, como cantámos no Salmo – e morar na Casa do Senhor, neste contexto, significa viver unido a Deus, em sintonia com a Sua Santa Vontade.
Para aqueles que ainda procuram o seu caminho, que estão em discernimento vocacional, e falo sobretudo para os jovens, é bom e é normal que, de uma forma ou de outra, esta dinâmica de discernimento, seja vivida com verdade, com autenticidade. Caríssimos jovens, convido-vos, exorto-vos a escutar a voz de Deus com confiança com disponibilidade. Abri os vossos corações a Cristo, não temais!
Para quem já abraçou uma vocação – seja o matrimónio, a vida consagrada, vida religiosa, o sacerdócio ou o laicado – é tempo de redescobrir a alegria do primeiro amor, de recordar e viver a frescura inicial da entrega e de pedir a graça de renovar o entusiasmo que nos levou a dizer SIM. O Senhor não cessa de nos chamar a ir mais longe. Estejamos atentos à Sua voz e disponíveis para a Sua vontade. A atitude de escuta e disponibilidade não terminou no dia em demos o nosso sim.
- Aprender com o exemplo da Sagrada Família e com Ana, Mãe de Samuel
A Sagrada Família de Nazaré é escola de virtudes onde tanto podemos aprender.
Maria e José: Ambos acolheram com generosidade a missão que Deus lhes confiou. Maria, com a sua humildade e disponibilidade, ensina-nos a guardar os mistérios de Deus no coração e a meditar sobre eles. A sua presença discreta na vida de Jesus, mesmo na sua vida pública, ensina-nos tanto. José, homem justo e silencioso, é exemplo de coragem, responsabilidade e dedicação. Que José possa ser exemplo para os pais e para os se preparam para ser pais – José o homem que cuida, que protege e que guarda a sua família com tanto desvelo.
Os dois, Maria e José, mostram-nos que ser pai e mãe é mais do que uma condição natural: é uma vocação divina, uma missão de amor que exige entrega e confiança em Deus.
Jesus: Mesmo sendo o Filho de Deus, Jesus cresceu numa família humana, aprendendo de Maria e José o valor da obediência e do respeito. O episódio do Evangelho de hoje revela- nos que a obediência de Jesus aos pais não o impedia de ser livre para cumprir a vontade do Pai. Esta liberdade na obediência é um convite para nós, para vivermos com fidelidade o nosso papel na família, sem nunca perder de vista o horizonte de Deus.
A família é, pois, o primeiro lugar onde se transmite a fé. Este lugar onde se plantam as sementes da vocação, onde se aprende a escutar a voz de Deus e a amadurecer na liberdade. Para os pais, este é um apelo a serem testemunhas vivas da fé e da confiança em Deus. Para os filhos, é um convite à gratidão e ao reconhecimento da família como dom precioso.
A dinâmica própria dos sentimentos que se vivem, que se experimentam no seio da família não devem ser obstáculo ao acolhimento do dom da vocação, à disponibilidade para seguir a vontade de Deus. Na primeira Leitura temos o exemplo de Ana, Mãe de Samuel, que não prende e não se prende ao filho, precisamente porque muito o amava, este amor mais profundo, que permite ir mais longe que a lógica dos apegos sentimentais. Que não me entendam mal – os sentimentos fazem parte do que somos e das relações que as pessoas estabelecem entre si. Mas, por vezes, podem conduzir a uma possessividade que não faz bem aos que amamos. Importa recordar o contexto – Ana era uma mulher casada, mas estéril e que queria muito ser mãe. Pediu insistentemente a Deus o dom de um filho, que lhe foi concedido, mas, generosamente, entrega-o a Deus. Pediu e acolheu com fé o dom deste filho e também com fé o entregou a Deus, deixando-o seguir a sua vocação. E que consequências daqui vieram, o Profeta Samuel que veio a ungir o Rei David e foi da sua descendência que nos foi dado o Messias. E tudo isto requer fé, confiança em Deus, mesmo quando não conseguimos compreender tudo.
Vejamos o exemplo de Maria e José neste episódio que nos é narrado no Evangelho que acabámos de ouvir – Maria e José vão também mais longe que a dinâmica própria dos sentimentos que experimentaram ao perderem o Filho (e por três dias!). E a sua reação diz-nos isso mesmo. “Não sabíeis que devia estar na casa de meu Pai?” – perante esta resposta de Jesus, diz-nos o texto que não entenderam estas palavras de Jesus e mais adiante, diz-nos o evangelista que Maria guardava todos estes acontecimentos no seu coração. Em Maria, vemos esta disposição interior de contemplação do mistério de Deus. Esta atitude que vemos em Maria e também em José e que nos pode ajudar a viver não apenas condicionados pela lógica e dos (vários) apegos, (entre os quais também tantas vezes estão os afetos que podem inclusive ser desordenados, como nos ensina a espiritualidade inaciana) – os afetos, que, se não forem bem integrados, podem condicionar e limitar a nossa liberdade de acolhimento e de adesão ao Amor de Deus e à Sua Santa Vontade.
- A nossa identidade: filhos de Deus
Na segunda leitura, São João recorda-nos com ternura: “Vede que admirável amor o Pai nos consagrou em nos chamar filhos de Deus. E somo-lo de facto!” Esta verdade deve encher-nos de esperança e alegria. Não somos apenas criaturas; somos filhos amados, herdeiros da promessa divina.
Esta identidade confere-nos uma dignidade única e desafia-nos a viver de acordo com a nossa filiação divina. Como filhos de Deus, somos chamados a viver na liberdade, na confiança e na entrega, deixando que a nossa vida seja reflexo do amor do Pai.
- Esperança: Peregrinos no Ano Jubilar
Neste início do Ano Jubilar, como filhos muito amados de Deus, somos convidados a caminhar como Peregrinos de Esperança. A esperança cristã não é apenas um sentimento ou um mero otimismo; é uma virtude teologal, enraizada na certeza de que Deus é fiel às Suas promessas. Como nos diz o Santo Padre, na Bula de Proclamação do Ano Jubilar, no texto que ouvimos no início desta peregrinação, na Igreja de Santa Maria “A esperança nasce do amor e brota do amor que brota do coração de Jesus trespassado na cruz […] a esperança cristã não engana nem desilude, porque está fundada na certeza de que nada nem ninguém poderá jamais separar-nos do amor divino”
Também nós, mesmo no meio das dificuldades e incertezas do mundo, somos chamados a avançar com confiança, sabendo que Deus nos acompanha. Este Ano Jubilar é uma oportunidade para renovar a nossa fé, para fortalecer os laços familiares e para caminhar com alegria e determinação na missão que o Senhor nos confia.
Caríssimos irmãos e irmãs, inspiremo-nos na Sagrada Família e deixemo-nos guiar pelo seu exemplo. Peçamos a graça de viver plenamente a nossa vocação, de escutar com atenção o que Deus nos pede e de redescobrir a alegria de sermos filhos de Deus. Que as nossas famílias, fortalecidas pelo amor e pela fé, sejam testemunhas vivas da esperança no mundo.
Que Jesus, Maria e José nos acompanhem e intercedam por nós neste Ano Jubilar, para que sejamos verdadeiramente Peregrinos de Esperança, levando o amor de Deus a todas as pessoas e lugares.
† Fernando Paiva, Bispo de Beja